Sou mau feito Pica-Pau...
Odeio mendigo que me pede algo quando estou comendo...
Hoje dei um esporro em um...
Acho sacanagem...
Mas tenho respeito por ferrado pelo destino que me trata como igual...
No caminho de casa sempre dou alguma grana miúda para um mendigo - que já se tornou meu freguês - e some volta e meia...
Nunca me pediu nada...
Certa vez me deu "boa noite"...
Logo após?
Acomodou-se entre seus trapos e papelões naquela noite de frio e chuva inclemente me fragmentando o coração duro...
A partir de então sempre lhe alcanço algum trocado...
Certo dia, ele dormia equilibrado numa pequena marquise abandonada e coloquei dois reais entre seus dedos sem que ele despertasse...
Ao acordar deve ter achado que era dávida de algum Deus que o abandonou há muito...
Pôs bueno...
Ontem...
Ele estava - no mesmo local - acompanhado por uma moradora de rua...
Seu rosto está a cada dia mais desfigurado pelo sofrimento e a sujeira das ruas...
Mas não perde a candura...
Nunca reclama de nada...
Me chama de 'padrinho'...
Mas...
Nada me pede...
Sua nova acompanhante pergunta se tenho condições de lhe conseguir alguma roupa nova...
- Não!
Meto a mão no bolso e só tenho uma nota de 20 reais e uma de cinquenta...
Pego moedas e chego a mais de três reais...
Entrego e sigo em frente...
Meto a chave na minha porta...
Coloco na geladeira, a Coca Cola Zero dois litros e o embrulho com Mortadela Defumada Diet(?) da Sadia de meu lanche para ao acordar do dia seguinte...
A imagem de meu "afilhado" me persegue...
Tomo banho...
Coloco uma bermuda...
Não conseguiria dormir tranquilo se não fizesse algo diferente do que indiferença...
Enfio numa sacola plástica a Coca-Cola; a mortadela diet(?) e meus últimos três pães...
Fico em dúvido ao apalpar a manteiga em lata sem sal que adoro e um litro de suco de laranja...
Pego tudo...
Caminho até o local...
- Voltei para dar uma reforçada, amigo...
- Você é patrão mesmo...
- Não sou... A Coca Cola está quente, mas com vinte reais você compra gelo por aí...
Daí tive uma surpresa...
Jamais havia percebido que meu "amigo" é deficiente físico...
Me mostra uma das mãos deformadas como em gancho...
Sua companheira - aquela que me pediu roupas e neguei - é paralítica e teve sua cadeira de rodas roubada por outro mendigo enquanto dormia...
Mostra suas curtas pernas deformadas...
Enquanto converso eles vasculham o lanche que acabo de trazer como se eu não estivesse mais ali...
O dinheiro, meu parceiro sumiu por entre algum bolso sem conferir de quanto se tratava quase a esconder de sua parceira de miséria...
Comento que se arriscarem a ficar na rua serão conduzidos à algum abrigo...
Daí?
Surpresa...
Eles torcem serem abrigados pelo poder público...
Prometo arrumar roupas para a moça, semana que vem, que eu pediria para uma amiga que costuma doar quando resolve limpar o guarda-roupas...
Conheço, pessoalmente, pelo menos três radialistas que doam cadeiras para necessitados e pensei em fazer contato, apesar de não falar que iria tentar...
Pode até ser cascata deles...
Não importa...
Dois miseráveis abandonados pelo destino chegaram ao fundo do poço na minha frente...
Não tenho direito de fazer julgamentos sobre a quantidade de fantasias que eles arquitetam para sobreviver...
Não tenho...
Não tenho...
Seja feliz!
